16 de mai. de 2009

“Jabuticaba chupa-se no pé”

Existe prazer mais doce na vida do que colher e saborear a fruta à sombra da própria árvore? Para quem mora em cidades tragadas por ondas imobiliárias, é um desejo quase impossível de ser realizado. A frustração surgiu, caros leitoras e leitores deste blog Singular , quando lia a revista Piauí e me deparei com um anúncio, provocador de água na boca. A dona Almira Morais, moradora do Sítio Palmar, Sabará/MG, estava alugando um pé de jabuticaba. Que coisa mais bucólica, uma peça publicitária oferecendo aos clientes a oportunidade de “comer as frutas debaixo do pé ou levar para casa”.
Até na formulação gráfica (tipologia de letras e desenho tosco), desprovido de efeitos visuais, o anúncio lembra os antigos “reclames” de pequenas lojas, publicados nos matutinos impressos. Naqueles tempos, os produtos eram ofertados à fiel clientela, como se anunciantes/consumidores, fossem vizinhos. A propaganda sacramentava amizades.
Como Sabará (município vizinho à Belo Horizonte) não “fica bem ali” de onde moro e a grana que ganho é despossuída de lastro financeiro que permitiria tal delícia (viajar só para comer jabuticaba na jabuticabeira), restou-me a fantasia do faz-de-conta. Conversei com dona Almira, via telefone, e ela disse que o anúncio, publicado na revista, funcionou. A emoção e a minha curiosidade só se acalmaram quando me socorri a outro mineiro, Carlos Drummond de Andrade, e pude imaginar o quanto é prazeroso degustar a jabuticaba, lendo o poema Menino Antigo:

“Atrás do grupo-escolar ficam as jabuticabeiras.
Estudar, a gente estuda. Mas depois,
ei, pessoal: furtar jabuticaba.
Jabuticaba chupa-se no pé.
O furto exaure-se no ato de furtar.
Consciência mais leve do que asa ao descer,
volto de mãos vazias para casa”.

15 de mai. de 2009



Augusto Pontes

A entrevista desejada
que nunca fiz

Em 2007, fui procurado pelo compositor e professor de História, Wagner Castro, e indagou-me se eu teria coragem de publicar na Singular uma pesquisa dele sobre os meandros da música cearense, envolvendo Fagner e Belchior. O trabalho de Wagner revelava, que muitas canções da dupla tinha versos de um outro poeta e que não era citado nos créditos dos discos. Por exemplo “vida, vento, vela, leva-me daqui”, em “Mucuripe”. A omissão mais grave dos dois compositores refere-se a melodia “Apenas um Rapaz Latino Americano”. O poeta obscurecido em sua arte, faleceu, hoje. Augusto Pontes leve para o túmulo, a certeza que é autor de dois dos melhores versos da música cearense em todos os tempos.
Quando saiu a edição com o trabalho de Wagner Castro entreguei nas mãos de Augusto, no Flórida Bar, um exemplar da revista. E naquele momento, ele, sorrindo confirmou tudo que era relatado, pela primeira vez, na imprensa cearense. Fiz o convite para uma longa entrevista sobre a sua participação no movimento cultural cearense, especialmente na música. E, ele sempre adiava o nosso encontro. E todas as vezes que eu o encontrava, renovava o convite...
Infelizmente, nunca mais.


É um tal de disse-me-disse na canção cearense

Wagner Castro*

Como bem disse Caetano em sua canção Língua: “Se você tiver uma boa idéia, é melhor fazer uma canção”. Os artistas cearenses que deram início as suas carreiras nos anos 60 e 70 tiveram boas idéias. Na época, Augusto Pontes era uma espécie de guru, de “agitador cultural”. Além disso, deu nome a muitas canções, pôs versos em algumas como vida, vento, vela, leva-me daqui em Mucuripe como se fosse um redator final de algumas letras. Por outro lado, para Fagner, o autor do verso seria Guerra Junqueira, poeta português.
Talvez, a mais emblemática tenha sido Apenas um Rapaz Latino Americano, de Belchior. No dia de sua apresentação quando foi cursar o mestrado em Brasília, cada aluno identificava-se com o nome e em seguida declamava uma poesia ou um verso. Naquele momento Augusto Pontes declamou: “Eu sou apenas um rapaz latino americano sem parentes militares, sem parentes no poder. Apenas eu, a pé, só eu, a pessoa eu”.Indagado de a letra da canção Apenas um Rapaz Latino Americano era sua, Augusto comentou: “Isso foi uma carta enorme que eu fiz para várias pessoas, inclusive Belchior(...) Um carta coletiva,grande; mandei para o Rodger, Ednardo, Aderbal Júnior; muita gente”.
Perguntado a Belchior se ele tinha facilidade de fazer canção a partir de frases de amigos e poemas como veículo para uma boa idéia, Belchior relatou:
Essa música Rapaz Latino Americano, é uma música de 66. Ela tinha o seguinte nome porque era uma expressão que o Augusto falava muito no Bar do Anísio. Falava dessa solidão latino-americana, dessa necessidade de ir pra casa em meio à solidão e o fato de não ter parentes militares. Então, eu resolvi fazer uma música sobre isso. (...) Que eu tenha conhecimento, foi a primeira vez que apareceu, no meio da música popular brasileira, essa música mais falada, de jogral.
Àquela altura dos acontecimentos, da repressão ao meio artístico e cultural que o Brasil vivenciava, ter parentes importantes e militares arrefecia as tensões possibilitando um melhor trânsito em diversas áreas, mas a censura não se fazia de rogada; tanto que a expressão; “parentes militares” da canção foi substituída por “parentes importantes”.
Belchior também freqüentava o Bar do Anísio não como boêmio, mas para ouvir as conversas e as canções, e uma vez ou outra mostrava uma nova canção como foi o caso de Mucuripe, depois parceria com Fagner. Tornou-se a canção mais gravada por cantores consagrados e a que Fagner mais s orgulha, vencedora em 71 do Festival do Ceub (Centro de Estudos Universitários de Brasília).
No intervalo das aulas de Medicina, Belchior tocava violão embaixo das mangueiras da UFC, mesmo com uma certa timidez, passou a frequentar o Bar do Anísio onde gostava de apresentar uma música nova. Assim se referiu à maneira como tinha sido a construção de Mucuripe.
“Mucuripe veio da idéia de fazer desde um filme antigo, em que eu vi aconselhando a mulher de um marinheiro; dizendo que ela deixasse o mar receber todos os seus sofrimentos, todas as suas mágoas e tal. Então, resolvi fazer uma música sobre isso; a questão do Mucuripe, do significado do nome e porque naquela altura o Mucuripe era um local muito poético, com suas dunas. Eu fiz um scanner de Mucuripe, com letra e música e depois o Raimundo Fagner fez uma outra música bem melhor que a minha, tanto que ganhou o festival. Depois, com muito prazer, eu deixei de cantar a minha (risos), a música do Fagner tinha ganhado o festival. Foi muito bom isso ter acontecido, porque ela foi fruto de uma parceria muito feliz”.

Sobre a referida canção, Fagner comentou:
“O único fato curioso é quando apareceu o Festival Nordestino, eu coloquei a minha música Mucuripe, minha música mais forte com Belchior. Ela não entrou nem entre as quarenta. Isso realmente fica como uma nódoa para os organizadores daquele festival. Mucuripe foi a música mais importante da minha carreira. Ela foi gravada por Roberto(Carlos); pela Elis (Regina) e isso já bastaria pra desmascarar um pouco a organização desse festival (...) Festival da Ceub em Brasília eu ganhei com Cavalo Ferro, Mucuripe, Manera Fru-Fru. Ganhei o melhor intérprete e o melhor arranjo. Foi uma lavagem no Festival; isso despertou interesses, eu fiquei famosíssimo na Universidade de Brasília, apareci em todos os jornais”.
Os depoimentos de Belchior e Fagner despertam alguns questionamentos. O riso de Belchior, ao mencionar que a maneira de Fagner cantar Mucuripe era melhor, evidenciava certa ironia. Sobre o modo de cantar essa música, Fagner declarou:
“(...) O próprio Belchior, já que estamos falando a verdade, eu não gosto de esconder nada; a própria música Mucuripe, nas nossas rodinhas, eu cantava com ele. Em seguida, ele cantava com outra música dele para mostrar sua individualidade, uma coisa constrangedora. É tanto que a música dele nunca vingou, ele teve que gravar a minha mesmo. Existia uma disputa mesmo entre a gente, uma disputa de sobrevivência também; todo mundo querendo vencer na vida.

De fato, a canção Mucuripe foi gravada no disco Manera Fru-Fru, de Fagner, em 73, com arranjo original de Ivan Lins.
Depois de 31 entrevistas com o Pessoal do Ceará, no caso em particular com Belchior Fagner e Augusto Pontes, percebe-se que suas lembranças ora convergem, ora divergem quanto ao local e produção de certas canções, evidenciando orgulho, vaidade...Todavia, muitas são as intenções quanto à elaboração de uma música; o delineamento de suas construções e suas representações fornecendo múltiplos elementos para se pensar a arte na História e em particular a música popular.

*Wagner Castro é professor, mestre em História e compositor
Gente brasileira , por Jean Manzon


O francês Jean Manzon (1915/1990) revolucionou a imprensa brasileira, desde que por aqui aportou, fugindo da II Guerra Mundial, formando com o repórter David Nasser a principal dupla da extinta revista “O Cruzeiro”.
As fotos, em preto e branco, ângulos diferentes, closes de arrepiar) produzidas por ele, eram algo de novíssimo, se comparadas às produzidas na imprensa nacional daquela época.

Possuidor de uma impecável qualidade estética, Manzon se dedicava, com fotos pulsantes, a fazer aflorar a multifacetada gente brasileira. Retalhos de sua obra foram publicados na Singular, edição de abril/2007.

Apreciem, pois, um resumido ensaio de seus trabalhos:








Olha aí, gente,
a pose do Falcão

Esta foto, principalmente a pose do Falcão têm uma historinha interessante. Todas às vezes que a gente se encontrava, especialmente no Clube do Bode, aos sábados, era combinado um dia para ele fazer “um comercial” da Singular, na base da amizade: cachê 0800. Nunca dava certo, pois, ele com a agenda repleta de shows, viagens, não havia como conciliar. Finalmente, aconteceu o grande dia. Local do “ensaio fotográfico”: o banheiro do Buoni Amici’s Sports Bar, local, onde naquela noite (20/04/2007), a estrela máxima do brega nacional ia se apresentar.
O grande problema: o banheiro masculino era apertado demais para abrigar o Falcão e eu, fazendo as vezes de fotógrafo. O jeito foi interditar o banheiro das mulheres. Falcão arriou as calças e “enquanto descarregava ansiedades e emoções, leu a Singular”: (assim ficou o texto do anúncio). E eu, deitado no chão, procurando o melhor ângulo para clicar o novo garoto propaganda da revista.
Grande e generoso Falcão.

14 de mai. de 2009


O tapioqueiro e o oftalmologista


Não sei de onde ele vem, onde mora, se tem amigos ou inimigos...nem seu nome, sei. Só testemunho, de segunda a sexta, o seu encontro, parece marcado, com outras pessoas, suas clientes.
Ele vende tapiocas. O que me chama atenção nesse passante anônimo que circula pela minha rua é a pontualidade, quase que absoluta. Quando o relógio marca 4 horas da tarde, daqui do meu ap. escuto uma voz, de timbre alto, mercadejando tapiocas e às vezes, também, pamonha e canjica. Ele só atrasa ou não vem quando chove, por aqui, a cântaros.
Nesses últimos dias, por obrigação de paciente, tenho que me deslocar até uma clínica oftalmológica, sempre acompanhado pela minha filha, a dedicada Eliégia. O exame do doutor é precedido de todo um ritual determinado pela atendente do consultório. Primeiro: a tal atendente liga, com um dia de antecedência da consulta, avisando que se deve chegar 15 minutos antes da consulta. Seria uma maravilha, caso o organograma de horário fosse cumprido. Isso não acontece: só mostro os meus olhos para o doutor, três ou quatro depois do horário acertado.
Que belo exemplo do tapioqueiro...
Prédio da extinta Rede Manchete é arrematado. Só que parte do dinheiro vai para o governo

Por coincidência, dez anos depois da Rede Manchete ter saído do ar, o prédio da falida Bloch Editores foi arrematado, nesta terça-feira (dia 12), por R$ 65 milhões. Com o valor arrecadado, dívidas trabalhistas poderão ser sanadas. Porém, uma decisão judicial prioriza o pagamento de dívida ao governo, no valor de R$ 25 milhões.
São mais de dois mil ex-funcionários com processos, já julgados, que receberão pagamento de dívidas trabalhistas (R$ 33 milhões). Além desses processos, ainda estão em andamento cerca de 800.
Vamos relembrar um dos momentos de glória, de audiência da Rede Manchete e de grandeza da teledramaturgia na televisão brasileira. Para o público, “Pantanal”, exibida em 1990, sempre será lembrada como a novela que bateu a audiência da Rede Globo, pois conseguia ultrapassar, frequentemente a marca dos 40 pontos de audiência. O sucesso da trama rural colocou a emissora de Adolpho Bloch entre as grandes produtoras de telenovelas da América latina. Depois, nos nove anos que lhe restaram, a Rede Manchete, já em acelerada decadência financeira, nunca mais repetiria o feito.
Recordemos uma das cenas mais emocionantes e sensíveis de “Pantanal”, de Benedito Ruy Barbosa e direção de Jayme Monjardim: o nascimento de Juma Marruá. A novela, posteriormente, foi reprisada pelo SBT.



Mansão de “E o vento levou” foi copiada, em Fortaleza

O desprezo pela preservação da memória arquitetônica de Fortaleza acontece há anos, principalmente no Centro da cidade. Prédios antigos, pertencentes a particulares e que não são tombados, mas deveriam pelo Patrimônio, são demolidos ou descaracterizados. O prédio pertencente ao Tribunal Regional do Trabalho da 7ª Região (Av. Santos Dumont, 3384 –Aldeota) que não é tombado, entretanto, tem uma história curiosa.
Vocês, caras e caros internautas, sabiam que a fachada da edificação foi copiada da requintada propriedade da família Wilkes, protagonista do enredo de um dos filmes mais famosos de todos os tempos: “E o vento levou” ? A foto (à esquerda) é uma das primeiras cenas do filme, por ocasião do churrasco na fazenda Twelve Oaks.
Segundo informações orais, quando da construção do prédio, possivelmente no final da década de 40 ou início dos anos 50, do século passado, os construtores fizeram a fachada semelhante aquela existente na requintada Twelve Oaks. Pois, esse era o desejo de um dos proprietários ou de alguém da família, fã do clássico do cinema.

13 de mai. de 2009

“Czardas” ao amanhecer

Hoje, depois de acordar, não sei o porquê, saiu lá de um pequeno compartimento das minhas lembranças uma melodia que há muito tempo não escutava. Música é um prelúdio para o amor que se avizinha, que acontece ou fenece. Ela pode trazer algo caricioso ou açoites para corações partidos. A que se apresentou nas minhas primeiras horas do amanhecer passa longe das manhas amorosas.
Quando ouvi “Czardas”, de Monti, pela primeira vez (caras amigas e caros amigos internautas contem muitos janeiros) senti um frenesi diferente por aquela canção inspirada numa dança
húngara que tem a mesma denominação. Só que a execução que escutei, lá no fervor da juventude, era exibida pelo conjunto “Os Incríveis”, conjunto que tirava som de guitarras, teclados, contrabaixo, saxofone e bateria. Uma interpretação completamente diferente para uma composição que, por tradição, é tocada por violinistas. Era de arrepiar.
Partilho com vocês dois momentos de “Czardas”: primeiro com “Os Incríveis”, conjunto que fez muito sucesso à época da Jovem Guarda; e depois a belíssima execução do violinista Alexander Boissonnault.




12 de mai. de 2009

Walt Disney "chupou"

Zé Carioca


Certo dia, “navegando” pelo Google, percebi o quanto são exaltados os vídeos que mostram os primeiros desenhos animados de Walt Disney apresentando Zé Carioca, o Brasil ao Pato Donald. Realmente, os elogios procedem, pois os trabalhos gráficos são magistrais.
Só que aquela beleza multicolorida fazia parte de um plano estratégico da Política da Boa Vizinhança, do presidente dos EUA, Franklin Delano Roosevelt. E um dos principais objetivos era conquistar o mercado latino-americano, em plena Segunda Mundial (1939/1945). Eles botaram, mesmo, pra quebrar, por aqui, no Brasil, como dominadores. E a coisa continua, cada vez, mais forte: na língua, nos costumes, na cultura, na música ( nesta nem se fala: basta ligar o rádio nas FMs) etc, etc.
Mas voltando ao Walt Disney e seu personagem Zé Carioca. Realmente, o personagem é registrado por ele, só que o verdadeiro autor da figura do boneco é um brasileiro: o cartunista J. Carlos.
. Essa história eu já tinha ouvido falar, todavia tirei minhas dúvidas quando entrevistei para a Singular a historiadora cearense Isabel Lustosa que tinha feito uma pesquisa sobre a produção gráfica de artistas brasileiros. Segundo ela, quando Walt Disney esteve no Brasil, em 1941, ficou encantado com os desenhos de J. Carlos e o convidou para trabalhar em seus estúdios, nos EUA. J. Carlos recusou, mas depois mandou para Disney um desenho de um papagaio vestido com o uniforme da FEB (Força Expedicionária Brasileira). Isabel contou que o rascunho desse desenho original consta dos arquivos da família do artista brasileiro e comprovou que a figura que aparece é idêntica ao Zé Carioca. Portanto, a origem do personagem, assumido por Walt Disney, é brasileira, porém, nunca reconhecida pelo famoso artista gráfico.
Reparem, no vídeo Desenho Aquarela do Brasil, feito nos estúdios da Walt Disney Production, a postura colonizada imposta ao personagem Zé Carioca, que no primeiro encontro com o pato Donald, fica completamente embasbacado, saltitante, pulando de alegria, diante do “ídolo” Pato Donald. E até fala em inglês. Vejam também amigas e amigos internautas, que na abertura do vídeo, está entre os nomes creditados, o de Ary Barroso, emprestando (claro, ganhando uma boa grana) a sua composição Aquarela do Brasil (que muitos anos depois foi considerada a música mais genuina do cancioneiro brasileiro) como fundo musical para a farra americana. Ary Barroso é outro brasileiro que foi cooptado - até passou uma temporada nos EUA - pela famigerada Política da Boa Vizinhança.



É bom excluir desse processo de aculturação o nome de Carmen Miranda. Embora, muitos a identifique como a artista de maior sucesso do projeto de migração de artistas latino-americanos. Não foi. Ela chegou nos Estados Unidos, em 1939, e já era estrela consagrada.
Penso que foi o simpático, ingênuo e “abrasileirado” boneco Zé Carioca, um dos primeiros e poderosos instrumentos da invasão da cultura ianque em nossos domínio. E deu no que deu.
Jornalista foi xingado pelos “colegas”.
Motivo: ganhou o Prêmio Esso

O prêmio Esso de Jornalismo é a glória suprema para os profissionais que militam na imprensa brasileira. Quem ganha é coberto de badalações, ovacionado pelos colegas, dá entrevistas, um popstar. Não foi o que aconteceu na edição do Prêmio/2004, simplesmente porque o prêmio de reportagem não saiu para um trabalho publicado na chamada grande imprensa.
Sob apupos e vaias. Foi assim que os jornalistas empregados nos jornalões e revistas do eixo Rio- São Paulo “saudaram” o colega de profissão, Renan Antunes Oliveira, que acabara de ser chamado para receber, no Rio de Janeiro, o
Esso. Motivo da inveja: o Jornal , em que foi publicada a reportagem vencedora, A tragédia de Felipe Klein, tem tiragem de apenas dois mil exemplares. Eles não se conformavam como fato de Veja, Istoé, Folha de São Paulo, Estadão, Época
, por exemplo, fossem preteridos pela comissão julgadora que consagrou um jornal mensal e que circula apenas em bairros de Porto Alegre. Após as vaias, o jornalista falou de suas andanças profissionais antes de chegar ao Já. Finalmente, a platéia, rendendo-se ao talento, aplaudiu o vencedor. Em entrevista à Singular, via e-mail, Renan afirmou que adorou a manifestação dos indignados, “pois senti na hora que vinham do coração, do lugar mais escuro, atrasado, reacionário e fascista que conheço: a ignorância”.
E Renan nos autorizou a publicar na
Singular (edição de março/2005) o seu texto vencedor do Esso. Quando saiu a edição, enviamos um pacote de exemplares. Ele pediu mais, mandamos. Ganhamos até um elogio dele, pois, segundo Renan, a diagramação da Singular ficou melhor do que a exibida na publicação original. Mais felizes, certamente, continuamos a viver.















Vejam a reportagem:

A Tragédia de Felipe Klein
Renan Antunes


Ele tinha tudo para ser feliz. Juventude, saúde, talento, dinheiro, o amor de belas garotas. Mas Felipe construiu para si um mundo dark e animal. Tatuou demônios no peito, e foi vencido por eles.
Na noite do sábado, 17 de abril, um corpo de aparência incomum foi levado pela Polícia ao necrotério da Avenida Ipiranga. Tinha duas protuberâncias esquisitas na testa. O médico-legista abriu o couro cabeludo, abaixou a pele até o nariz e se deparou com algo muito raro: dois chifres implantados na carne, feitos de teflon. Cada um era quase do tamanho de uma barra de chocolate Prestígio.
O cadáver estava todinho tatuado. Trazia argolas de metal nos genitais, mamilos, lábios, nariz e nas orelhas, e estas tinham orifícios da largura de um dedo.
De entre os chifres saíam três pinos metálicos pontiagudos. A língua fora alterada: cortada ao meio e já cicatrizada, parecia a de um lagarto.
É claro que Felipe Augusto Klein, morto aos 20 anos, nem sempre teve uma aparência assim.

Nasceu uma criança saudável. Era o caçula dos cinco filhos do casal Lili e Odacir- o pai é um político influente, quatro vezes deputado federal, ministro de FHC e atual secretário estadual da Agricultura.
Fotos de Felipe no álbum de família mostram a criança típica da classe privilegiada: um menino loiro, olhos azuis, bochechudo, limpo, bem vestido, e às vezes sorridente.
Foi na adolescência que ele começou a se mutilar com tatuagens, cirurgias e implantes. Pouco antes de morrer preparava-se para botar nas costas uma pele de lagarto e rasgar sulcos no rosto, para pintar neles uma máscara dos maoris, nativos da Nova Zelândia.
Em sua curta vida, Felipe radicalizou em body modification, a expressão inglesa dos adeptos de mudanças corporais. Nos últimos três anos, todo mês gravava alguma figura nova no corpo, ou se aplicava algum piercing. Para combater as dores provocadas por agulhas e bisturis, ele se automedicava.
As dores físicas eram fichinhas se comparadas ao espírito atormentado de Felipe. A mãe, as duas últimas namoradas e os dois amigos mais próximos o descreveram como um jovem patologicamente sensível a tudo que o rodeava, e em especial ao alcoolismo do pai.
“Eu não sou desse mundo”, era sua frase predileta. Felipe disse que se sentia assim para dona Lili, para Helena, seu grande amor, para Karen, sua última namorada, para Cristiano e Xande, dois tatuadores tão amigos que cada um segurou uma alça do caixão, e para Virgínia, uma amiga que foi ao enterro chorar com a família.
Não dá para saber quando foi que ele começou a se sentir desse jeito. A mãe contou que “cedo” a família percebeu nele “alguma coisa diferente”. Por isso, “desde pequeno recebeu tratamento psicológico”. Nos dois últimos anos esteve “sob controle de um psiquiatra”.

Os médicos diagnosticaram um mal que surge na adolescência. “O transtorno afetivo bipolar”, ou “psicose maníaco-depressiva”. Felipe vivia na gangorra entre depressão e euforia, quase sempre do lado da baixa. Era tratado com um coquetel de antidepressivos.
Na literatura médica, a origem do mal é incerta. Pode ser genética, ou despertada por um trauma. O certo é que “ele nunca foi uma criança feliz”, afirmou a mãe. Ela não sabe explicar como, entre seus cinco filhos, apenas Felipe teve a sina. “O mundo dele era seu quarto e seus bichos, não gostava de jogar futebol, nem de sair.”
Felipe passou a infância em Brasília, onde seu divertimento era colecionar gnomos, seres imaginários, de uma lenda nórdica. Na adolescência, já em Porto Alegre, onde terminou o secundário no Colégio Sevigne, aumentaram seus sintomas depressivos.
Por alguns meses fez parte da tribo urbana dos góticos, jovens que se vestem de negro, assumem um ar deprê e desprezam o resto da sociedade, mas se afastou deles porque o pessoal considerava excessivamente ... gótico.
Quando saiu dessa tribo de humanos, ele se voltou mais ainda para seus bichos. Passava dias trancado no confortável quarto que ocupava no amplo apê da família, no edifício El Greco, onde morava com a mãe, uma tia e mais de 20 animais.
No seu minizôo tinha gatos com pedigree, cobras importadas, filhotes de jacaré, tartarugas e lagartos. “Ele gostava mais de animais do que de gente”, contou Helena, citando outra frase ouvida dele. Tal paixão levou a estudar Veterinária na Ulbra, mas logo se desinteressou.
Paixão permanente só por tattoos. A primeira ele fez aos 11, levado pela mãe. Era um sol, na coxa direita. Na adolescência evolui de tatuagens inocentes para figuras demoníacas e implantes radicais, já então contrariando os pais.
Pesquisando na internet, Felipe virou autoridade em body modification. Quando começou a fazer experiências no próprio corpo ele apareceu na RBS TV, demonstrando as técnicas. Vaidoso, cortejou cineastas para tentar exibir seu visual em filmes. Já na fase da modification total suas imagens acabaram exibidas ao grande público, mas no Ratinho, numa comparação grotesca com um porco.
Seu visual o transformou numa celebridade na web. No pequeno círculo dos tatuadores, ele chegou a jurado de competições internacionais.

Quem o conhecia sabia que era determinado e não temia a dor. Ele mesmo se aplicava alguns piercings, aquelas argolas metálicas que usava no corpo, cuja fixação é um pequeno suplício.
Quando botava na cabeça que faria alguma modification ia em frente. Foi dele próprio a idéia dos chifres. “Eu tentei dissuadi-lo dizendo que um dia ele se arrependeria e que então seria doloroso retirá-los, mas ele não ouvia ninguém, lembrou dona Lili.

Com a decisão tomada, ele estudou os passos da operação em livros de Medicina. Depois, orientou o tatuador que fez a cirurgia.
Nos últimos meses, Felipe alimentou a bizarra fantasia de se transformar num animal como aqueles que amava- a idéia era virar um lagarto, aplicando sob a pele das costas bolinhas de silicone que lhe dariam um aspecto enrugado. A língua já estava pronta, dividida numa operação feita por um dentista de Taquara.
No final de março, Felipe anunciou a meta de implantar a máscara maori e virar lagarto, coisas que o deixaram irreconhecível. Ninguém pôde mais fazer coisa alguma por ele, exceto assistir sua dolorosa renúncia à humanidade.

Polícia não consegue depoimento do pai
A primeira pessoa a ver Felipe morto foi Tadeu, porteiro do edifício Palácio onde morava Odacir Klein. Ele contou que estava no saguão quando ouviu “um grito e um baque”. Caminhou até o muro que dá para o edifício Santa Maria e viu o corpo do rapaz estatelado no depósito de lixo do prédio vizinho.
Eram 18h56min do sábado, 17 de abril. Tadeu chamou a Polícia. Quase três meses depois, a Polícia ainda não tinha concluído o inquérito para apurar se Felipe se atirou, ou caiu, ou foi jogado do apto. 903, o quarto e a sala do pai, no nono andar do Palácio, no 888 da Duque de Caxias.
Só pai e filho estavam no apartamento na hora da morte- e o pai não deu depoimento. Alguns jornais divulgaram que alguém vira Felipe no parapeito momentos antes da queda. Tal testemunha confirmaria suicídio, mas ela nunca existiu.
Quem esteve muito próximo da cena, mas também nada viu, foi Lucas, um estudante que mora no oitavo andar do prédio vizinho, quase janela com janela com o apê onde estava Felipe. Ele apenas ouviu o mesmo grito e baque escutados pelo porteiro.
Por determinação superior, a investigação da morte de Felipe não foi para a delegacia do bairro, como sempre acontece com cidadãos comuns, mas sim para a especializada em homicídios.
O delegado Márcio Zachello, encarregado do inquérito, disse que “a investigação contempla todas as possibilidades”, mas trabalha mais com a hipótese de suicídio. Ele promete concluir a apuração “em breve”. Três são as principais evidências de suicídio. A primeira é que o corpo de Felipe foi encontrado a 11 metros de distância do prédio do Palácio, sinalizando que ele teria tomado impulso.

A segunda foi a constatação de que o pai estava quase inconsciente na hora da tragédia, bêbado demais para qualquer ação violenta. Examinado pelo Departamento Médico-Legal, ele tinha 26 decigramas de álcool por litro de sangue, numa escala onde seis é o limite legal da embriaguez.
A terceira é o depoimento da namorada, a estudante Karen, 20 anos. Ela disse às autoridades que os dois tinham um pacto de suicídio. Karen desistiu da idéia quando eles discordaram sobre formas indolores de morrer- Felipe gostava de se flagelar.
Ainda faltam duas peças para a conclusão do inquérito. O laudo da perícia feita no local pelo Instituto de Criminalística e o depoimento do pai. Ele já disse a familiares e amigos que não se lembra de nada do ocorrido naquela noite.
Filho cuidava de Odacir
Era Felipe quem cuidava do pai quando este bebia demais. “Meu filho se preocupava com o que pudesse acontecer com Odacir”, contou dona Lili. Ele sempre tentava protegê-lo”.
O drama do alcoolismo foi vivido em segredo pela família durante anos, até ser exposto em rede nacional de TV, em 1996. Odacir, então ministro dos Transportes, voltava de uma festa com o filho mais velho, Fabrício, quando este atropelou e matou um operário,em Brasília. Os dois fugiram sem prestar socorro à vítima, mas alguém anotou a placa do carro e eles foram descobertos. O ministro estava embriagado. Com a repercussão do caso ele renunciou ao cargo.
Nos últimos anos, Odacir fez vários tratamentos, alternando períodos ruins com outros de sobriedade. No ano passado, se separou da mulher e foi viver na mesma rua, a um quarteirão. Quando estava em dia ruim, assessores levavam documentos oficiais para que ele assinasse em casa.
Última hora
Passava das 5 da tarde, daquele sábado quando Felipe saiu do apê da mãe, atravessou a Praça da Matriz e caminhou até o do pai. Áquela hora, a família sabia que Odacir estava alcoolizado – e o filho cumpriria pela última vez a tarefa de cuidar dele.
“Quando o meu filho saiu, eu fiquei rezando o terço libertário. Pedi a Jesus para proteger e libertar os dois”, disse dona Lili – ela não derramou uma lágrima sequer durante 40 minutos de entrevista, numa manhã de junho.
Felipe chegou no edifício do pai e o esperou no saguão.Odacir apareceu pouca antes das seis, cambaleando. Caiu no portão. O zelador Gérson e o porteiro Tadeu tiveram que carregá-lo.
Os dois levaram Odacir para o elevador. Na curta viagem, Gérson notou que ele se contorceu de dor, provocada por um forte beliscão que Felipe lhe aplicara nas costas.
“Eu disse para ele parar de judiar do doutor Odacir”, contou Gérson. Felipe rebateu: “Ele só nos faz passar vergonha”. A frase do rapaz com o rosto desfigurado soou estranha para o zelador: “Vinda de quem vinha, parecia piada, mas notei que ele estava muito nervoso e fiquei quieto.”
No apê, Felipe ordenou que os dois atirassem o pai no chão, mas Gérson não aceitou: “Vinda de quem vinha, parecia piada, mas notei que ele estava muito nervoso e fiquei quieto.”
O que aconteceu depois não teve testemunhas. Vizinhos ouviram pai e filho discutindo, gritos abafados por portas fechadas. Às 18h56 minutos, a queda.
A Polícia chegou logo depois. Odacir aparece sem camisa nas fotos do inquérito, descabelado. Num relatório do SAMU os paramédicos atestaram que ele estava “com alcóol etílico, fala arrastada e movimentos desorientados”, mas sem ferimentos, exceto pequenos arranhões.
Uma parente passou pela rua, viu o rebuliço, ouviu o zun zun zun e correu para a casa de dona Lili – ainda sem saber quem tinha morrido. “Eu pensei que tinha sido o Odacir”, disse depois dona Lili. “Quando entrei na sala e o vi de pé, entendi que era Felipe.”
Ela ainda teve coragem para ir à janela e olhar para baixo. O filho estava de bruços, com as pernas quebradas, os pés torcidos para fora e os braços abertos em cruz.
Serenidade
Dona Lili disse que já temia que o filho se matasse e mostrou dois sinais: “Uma semana antes ele me deu uns óculos que eu gostava e distribuiu os bichos.” Tutankamon, o gato persa preferido, e Corn Snake, uma cobra americana, foram para o amigo Xande, tatuador em Camaquã. A mãe disse que agora se sente serena porque “ ele sempre teve tudo que queria, toda a ajuda que precisava. Não adiantou. Acho que ele estava muito avançado para nós, noutra dimensão.”
Ela buscou num grupo de pessoas que também perderam parentes: “Com eles, a gente pode falar, explicar e entender tudo”.
Dona Lili e o resto da família decidiram armar uma barreira de silêncio. Todos temem que o incidente possa prejudicar a candidatura do irmão Fabrício á Câmara dos Vereadores.
Recuperado do choque, Odacir retomou o trabalho, até viajou para a China na comitiva do governador. A tragédia uniu outra vez Lili e Odacir – ele voltou para casa, nunca mais pisou ao apê onde Felipe morreu.
Rebeldia no enterro
Felipe fez parte de um grupo gótico freqüentador do estúdio Tatoo Company, da Rua Duque. A musa do pessoal era a pintora Sílvia Motosi, uma Frida Kahlo dos pampas, cujos trabalhos estão expostos este mês na Usina do Gasômetro- amiga de Felipe, tatuada no mesmo estúdio e pelo mesmo tatuador, ela se matou em 2002, do mesmo jeito: saltando da janela do apê da família.
Quando menino, Felipe era como um mascote da turma, composta por gente bem mais velha. Na adolescência era cliente compulsivo. Finalmente, quando já estava todo tatuado, virou garoto-propaganda da casa. O pessoal de lá elogiava muito seu visual- ele se sentia estimulado e ia cada vez mais fundo.
Um tatuador do estúdio era seu confidente. Quando não estava se tatuando, Felipe aparecia com amigos para quem oferecia os serviços de estúdio. Por algum tempo a mesma turma se reuniu no ateliê da arquiteta Roberta, uma notável na tribo, para discussões sobre body modification, universo gótico e a arte da tatuagem, considerada por eles “tão efêmera quanto a vida”.
Ainda adolescente, ele serviu de modelo num calendário gótico. Na última página Felipe exibe o corpo com a palavra alone (sozinho), enquanto abraça a arquiteta – ela hoje tem 32 anos, vive na Áustria.
Uma série de fotos feitas pela produtora de moda Marion Velasco, com a participação de modelo Priscila Burman, é emblemática do visual chocante de Felipe mesmo antes do implante de chifres.
Seu corpo estava coberto por tatuagens aparentemente sem sentido. A mais dramática era uma face demoníaca no peito. Exibia cemitérios, dragões, flores, máscaras, frases completas- uma delas, em alemão, dizia “solidão para sempre”.
Para quem se sentia sozinho em vida, Felipe teve um enterro superconcorrido. Com a presença do governador Germano Rigotto, do senador Pedro Simon e até de adversários políticos do pai, como o ex-governador Alceu Collares, a cerimônia acabou atraindo centenas de pessoas e muitos jornalistas – foi tudo, menos discreta.
Os amigos do lado gótico dele não gostaram de ver tantos políticos no velório. Vírginia contou que um grupo de tatuadores, ela junto, “se posicionou entre caixão e os políticos durante alguns minutos, tenho certeza de que Felipe gostaria do que fizemos para protegê-lo”.
As diferenças entre a família e tatuadores apareceram também no convite para enterro, com dois textos. Um falando que o menino foi acolhido por Jesus e Maria. O outro dizendo que “no mundo de Felipe não pode haver maldade”. Houve um pequeno momento de constrangimento entre as duas turmas, episódio relatado por Virginia. A irmã dele, Fernanda, estava fazendo um agradecimento público aos tatuadores, dizendo “vocês eram sua verdadeira família”, quando foi brecada pela mãe: “ Não filha, ele nos amava, nós é que éramos sua família” – dona Lili falou com a autoridade de quem mais o conhecia.

Felipe levou consigo algumas de suas bizarrices. No pescoço, uma corrente com seu inseparável bisturi. Virginia meteu um broche no caixão, em sinal de amizade eterna. Karen, a última namorada, botou uma vaquinha nas mãos dele, certa de que seu amor só estaria feliz na companhia de algum animal.
Felipe foi enterrado no Cemitério São Miguel e Almas. Virginia reclamou da aparência prosaica do túmulo, queria “alguma coisa medieval”, que ela julgava seria mais ao gosto gótico do morto.
A tumba acabou adornada por um singelo bibelô de gesso, com a figura de um anjo montado num escorpião. A mãe mandou gravar uma frase na lápide, citando o martírio de Jesus no Calvário: “Nos precedestes na luz”.
Amor no Rio de Janeiro: foi raro momento de paz
Felipe conheceu o amor. Foi em outubro de 2001, numa convenção de tatuadores, em São Paulo. Aos 18 anos, branquelo e magro, 1m80 e ombros largos, ele atraiu Helena, sete anos mais velha, branquela e cheinha, 1m66. Ela só se aproximou dele dias depois, no protocolo jovem: via email.
Já em Porto Alegre, ele respondeu dizendo que também a tinha notado. Pediu uma imagem para conferir. E gostou da mulher que não fazia o tipo deprê. Carioca criada no Leblon, filha de uma professora de Literatura Francesa e formada em Publicidade, ela trabalhava numa produtora de filmes.
Superocupada, só teve tempo de vir a Porto Alegre na virada de 2002. Na noite de Ano-Novo, os dois ficaram. Ela jura que “foi um sonho”.
Helena se disse atraída, “porque ele era muito bonito antes das modificações”, além de ser “mais sério do que muita gente mais velha”. Ela o achou então “longe de ser deprê” e que seu figurino “era menos extremo”. No carnaval Felipe foi pro Rio.
Por alguns dias Helena ia trabalhar com Felipe a tiracolo. Ele ficava rolando nas locações, esperando pelo tempo livre dela. Os dois tomavam muito sorvete na lanchonete Chaika, em Ipanema. Ela engordou alguns quilinhos, ele não, ela acha que é porque ele “era magro de ruim”.
Helena estava apaixonada. Elogiou Felipe como “tudo, menos um amador”. Ela topou mudar-se para Porto Alegre. Em março de 2002, veio morar com ele, a mãe, a tia, a bicharada dele. “Foi um tempo legal. A gente via desenhos animados, assistia a filmes sobre Medicina no Discovery. Às vezes, ele inventava coisas na cozinha, era bom em massas”, recorda a moça.
O relacionamento foi crescendo e as diferenças aparecendo. Helena: “Ele dizia que queria ser cada vez menos humano. Sentia ódio da raça humana. Detestava pessoas gananciosas e as que buscam notoriedade”. A ex-namorada lembra que, “uma coisa muito dele era sofre quando via gente fazendo coisas ruins, uns passando por cima de outros para aparecer”. Ela dizia “esquece isso, vamos nos divertir”, mas parece que ele “não era isso, levava as coisas até o fim”.
Mais Helena: “Eu acho que é por isso que ele se matou. Ele queria ser o menos humano, mas ao mesmo tempo encarava todos os problemas. Se você encara, como vai sobreviver? O suicida é aquele que não vê uma saída. E Felipe era assim”.
Ela disse que ele demonstrava “grande preocupação com o pai. Quando ele sofria suas crises de alcoolismo, Felipe era o mais prestativo. Tomava a iniciativa de ajudá-lo, mas na volta se via que ele sofria. Ficava quieto num canto, muito triste.”
Num momento de depressão Felipe disse a Helena que gostaria de ser internado. “O psiquiatra não concordou e receitou Lexotan”, conta a ex-namorada. Depois de um ano trancada no quarto com Felipe, ela foi embora: Nenhuma história de amor dura para sempre” e “eu precisava trabalhar” foram suas razões.
Nos primeiros meses separados ele foi muito ciumento. Eu passei a ficar em casa, no Rio, para não desagradá-lo. Mas depois ele entendeu e me disse para desencanar, não queria nada ruim assim no nosso relacionamento”.
Felipe também seguiu adiante. No início, queixou-se para Cristiano na separação. Depois arrumou outra namorada, mas reclamava que ela “pegava no pé por picuinhas”. Não queria ficar sozinho e seu lema passou a ser “antes mal acompanhado do que só”. Nunca escondeu sua paixão e a falta que Helena lhe fazia.
Depois da morte, Helena foi chamada pela família-ela não o vira durante a fase final de modificações corporais. Um carro oficial foi esperá-lo no aeroporto e o enterro atrasado para sua chegada.
Virgínia disse que a viu no caixão, serena, repetindo baixinho para o morto, com ternura: “Me desculpe. Se eu não tivesse ido embora você ainda estaria vivo.” Agora é tarde, Felipe Augusto foi na frente. Nos precedeu na luz.

10 de mai. de 2009

Wilson Simonal: sucesso e tragédia

Estreia, neste mês, nos cinemas, o documentário Simonal – Ninguém sabe o duro que dei, dirigido por Cláudio Manoel (um dos integrantes do programa humorístico Casseta & Planeta), Micael Langer e Calvito Leal. O filme faz um retrospecto da trajetória do sucesso à tragédia pessoal e artística de Wilson Simonal (1935/2.000), cantor que durante cinco anos entre 1966 e 1971 empolgava multidões, e só perdia em popularidade para Roberto Carlos, naquela época o “rei” da Jovem Guarda.

O mundo começou a desabar para Simonal por conta de um episódio controvertido, em 71: desconfiando que o seu contador, Rafael Viviani, estava lhe roubando (ele ganhava muito dinheiro e fizera um contrato de patrocínio com a Shell - o maior do Brasil, naquela época). O artista chamou policiais civis do Dops (Departamento de Ordem Política e Social – órgão repressor da ditadura militar - 1964/1985), para aplicarem uma surra no suposto ladrão.
Denunciados à polícia pela vítima, o próprio Simonal foi detido por 12 dias e apontado como “informante do Dops”.
Por inveja e preconceito a esquerda, segmentada no meio artístico e jornalístico, caiu de pau em cima do criolo famoso.
A carreira gloriosa acabava ali. Virou alcoólatra, e até é morrer, traumatizado, o artista perseguido ficou 37 anos no ostracismo, sem cantar, vender disco, e com todas as portas fechadas.
Marginalizado como um leproso. Considerado um dedo-duro no meio artístico, a serviço da ditadura.
Porém, nunca foi provado que ele denunciava colegas de profissão. Em 2003, a pedido da família, a Secretaria Nacional de Direitos Humanos informou que não existia nenhuma prova de que Simonal tivesse servido à ditadura. Até a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) o reabilitou simbolicamente.
Pelo que já li sobre o filme, os dois filhos do cantor (Max de Castro e Wilson Simoninha, também artistas) não gostaram do documentário, pois, para eles, a história do pai está incompleta, principalmente porque quem aparece nas cenas finais é o dito contador Rafael Viviani, pivô de todo linchamento pessoal e artístico de Simonal. Em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, Max afirmou: “Não há contra-argumento depois do depoimento do contador. E a coisa não é tão simples assim”.

Veja o trailer do filme Simonal – Ninguém sabe o duro que dei,


Beleza de Capa


Antes da Copa do Mundo de 2006, resolvemos fazer uma edição especial sobre futebol. Pesquisamos muito sobre o assunto: desde a vida de Charles Miller, considerado o pai do futebol brasileiro, até a seleção que fracassou na Copa da Alemanha, perdendo na semi final para a França. Ficou uma beleza a edição, começando pela capa, um primor de trabalho gráfico, idealizado pelo artista plástico Carlus Campos. O Carlus caprichou na recriação pictórica que ele fez sobre uma foto antológica do Pelé, na Copa do Mundo de 1970, no México. Ficou tão bonita, mas tão bonita a ilustração do Carlus, (ele é ilustrador do jornal O Povo), que outro dia, a mesma ilustração, claro sem a logomarca da Singular, estava nas páginas do citado jornal, enriquecendo, graficamente uma matéria sobre a Copa do Mundo de 2014. A Singular, de alguma maneira, marcou presença nas páginas do O Povo.
Vacilada em “Cantando na chuva”

Gosto de fazer coleções. A mais recente que estou comprando é a Coleção Folha Clássicos do Cinema, que acompanha as edições dominicais do jornal Folha de São Paulo.
Já adquiri Casablanca, Dr. Jivago, Pacto Sinistro, Gata em Teto de Zinco Quente e Cantando na chuva.
Esse último tem uma cena que entrou para a história do Cinema: aquela em que Geni Kelly faz um sapateado memorável. Também teve uma vacilada. Certamente erro do montador, que na moviola, Fez a seleção e colagem dos pedaços do filme.
Pois não é que o blog Falhanossa.com (especialista em descobrir de continuidade de cenas nas montagens, cenários, adereços etc de filmes) aponta um erro na encenação da dança fantástica de Geni Kelly:
“Quando o policial aparece na cena onde ele está cantando na chuva, Gene Kelly está segurando seu guarda-chuva com as duas mãos. Na próxima cena ele está segurando só com uma das mãos”.
Veja o vídeo Singin'in the rain

Viva o rádio!

Adriano Macêdo disse...
Se o fim do mundo fosse anunciando HOJE, você saberia disso por e-mail, msn, skype, twitter, tv, celular… menos pelo jornal de papel que foi impresso ontem. Esquece o papel, Eliézer. Ele não tem mais lugar na instantaneidade do século 21.
5 de Maio de 2009 10:24
Foi o que o internauta Adriano Macêdo disse, neste Blog Discordo dele quando pensa que a notícia sobre o fim dos tempos será anunciada, caso isso aconteça, por e-mail, msn, skype, twitter, TV e celular. E esqueceu de citar um meio de comunicação muito mais antigo, porém mais eficiente, do que todos enumerados: o velho rádio.
Já em 1938, Orson Welles (1915/1985), antes de ser o cineasta famoso com o seu antológico Cidadão Kane, realizou uma programação radiofônica, inspirada na obra A Guerra do Fim dos Mundos “, de H.G. Wells (1866/1946), livro lançado em 1898. A interpretação de The War of the Worlds foi tão admirável e realista que provocou pânico entre os ouvintes.

Citei essa passagem de carreira de Orson Welles para ratificar a força do rádio, pois a mensagem transmitida chega em todos cantos e atinge ouvintes em locais e situações as mais diversas. É a dona de casa que está na cozinha, é o motorista, dirigindo o veículo, é o pescador etc, etc, etc....

Resumindo: até hoje, não foi inventado um meio de comunicação possuidor de mais abrangência do que o velho rádio.

Viva o rádio!

E que ele nunca transmita o apocalipse.

Quanto ao conselho do Adriano para que eu esqueça o papel, no caso a Singular impressa, digo ao internauta que ele não sabe da repercussão e do carinho que a citada publicação provoca nas distintas leitoras e nos distintos leitores. Agora, caso fosse o contrário, eu já teria metido a viola no saco. Um lembrete: a próxima edição da Singular já sendo preparada.

Só para ilustrar a citação do livro de H.G. Wells, vejam o vídeo abaixo War of the worlds (intersection scene), mostrando trechos do filme The War of the Worlds, dirigido por Steven Spilberg, em 2005, com Tom Cruise, no papel principal.